terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

*Especial Laricando Litoral Norte*

Sabe o que as pessoas do mundo fizeram em Fevereiro? Algumas pagaram uma nota pra sofrer fisicamente em alguma avenida vestidas com fantasias desconfortáveis, algumas pagaram uma nota para poder entrar em algum lugar e tentar transar com algum desconhecido, algumas pagaram uma nota pra tomar whisky brasileiro com energético durante uma semana e ver seu tico murchar, algumas gastaram uma nota organizando a quebra do recorde de "mais pessoas vestidas de Star Trek ao mesmo tempo" (em pleno dia dos namorados americano), e outras gastaram uma nota na locadora e na loja de conveniências.


Para o meu Fevereiro, meu segundo mês livre, optei por atividades muito mais variadas e, logicamente, frutíferas. Portanto, está aqui implícito que, ao passo que não atualizei este blog, ocupei meu tempo com o crescimento pessoal: trabalho duro, leitura, beberragem e, é claro, autoflagelação gastronômica através do excesso.


Minhas atividades de autoconhecimento e reflexão, contudo, embora dependessem muito do nível periguetístico portoalegrense, não se limitaram ao hedonismo anti-zen que propus no parágrafo anterior. Tanto que minha busca pelo Nirvana moderno não pôde limitar-se ao portinho.


No Domingo de carnaval deixei minha amada Porto Alegre, onde nasci, cresci, e hei de morrer (não sem antes morar na Jamaica ou coisa assim).


Ao aterrizar no Litoral Norte Sul-riograndense, meu estômago, obviamente, anseava por algo. Eu tinha uma sensação que todos os leitores que não forem eu mesmo relendo meus posts não têm como saber como é. Ao passar pelo famoso churrasquinho de Capão da Canoa ("como assim, 'famoso churrasquinho'? Capão tem mil churrasquinhos!" Calma, caro leitor, este ao qual me refiro é o na esquina da Paraguassú com a nãoseiqual, a rua da BRESOLIT e do MILLENIUM e do parque de diversões menos itinerante do mundo), achei que ali estivesse a solução. CONTUDO, meu cérebro indicou-me que não.


Capão da Canoa é uma cidade bastante efervescente no mês de Fevereiro. Entretanto, não há tantos lugares para os barbudos alternas. Por sorte, radicava-me no extremo Sul de Xan-Gri-Lá, um pago bem mais calmo e propício ao conforto.


O leitor agora pode estar reclamando que o Blog se chama "Laricando Porto Alegre" e que trata de Junk-Food e Porto Alegre, e que até agora não temos nenhum dos dois. Pois metade dessa insatisfação se tornará gozo neste próximo parágrafo...


...porque quando me sentei para começar a leitura, saboreando um Johnny Walker com Red Horse (pelos quais paguei baratíssimo), subitamente tive uma epifania, eu sabia do que precisava. Como eu fora sem meu leal fuscão, peguei o dindinho e rumei a Atlântida, mais precisamente ao centrinho, mais precisamente ao






Krep Do Kbça



Sou suspeito para falar deste estabelecimento. Como minha família teve, por muito tempo, uma casa em Atlântida, acabei freqüentando muito o chamado "centrinho" (Avenida Central, duas quadras da praia). E é no centrinho que, há onze anos, estabeleceu-se o Cabeça e seu estande de crepes suíços.


Para os direction-freaks, o Cabeça fica do lado da praça, quase diretamente à frente do Shopping de Carnes Manduca (adoro este nome), naquela parte do centrinho onde vemos vários quiosques padronizados, sendo o da extrema esquerda o Crepes Maquiné (que agora também vende tapioca e é o maior rival do Cabeça (não por qualidade, mas por (falta de) simpatia mesmo)), e o da extrema direita um quiosque que tem por característica variar de ano a ano, sendo que o mais duradouro ali foi uma venda de bijuterias e roupas femininas semi-hippie. O cabeça é o terceiro, da direita para a esquerda.


Sou cliente assíduo do Cabeça desde sua abertura, há onze anos. Nos últimos anos, após a venda de nossa casa de praia, passei a freqüentá-lo menos (nota: o Cabeça só abre na temporada de verão, e normalmente não abre na Páscoa). De uns sete anos pra cá, o Cabeça sempre faz questão de levantar um boato que abrirá em Porto Alegre, e sempre descobrimos nada sobre isso.


O Cabeça atende ele mesmo ou sua digníssima esposa, Sandra (que por mim é chamada Dona Cabeça, invariavelmente), e o simpático quiosque fica aberto a partir de mais ou menos 18h até de manhã. O cardápio não foge do tradicional de qualquer crepe gaúcho: entre as carnes, as mais populares são o bacon, o frango desfiado, o coração, o estrogonofe, a calabresa; e entre os vegetais normalmente aparecem o milho, o palmito, o alho e óleo. Os queijos são praticamente invariáveis: mussarela, catupiry, cheddar e uma mistura de quatro queijos (que na verdade é um queijo só - sabor quatro queijos). Vale notar aqui que o Cabeça dispõe de uma variedade de chocolates significantemente maior do que a média. PORÉM, meus anos de experiência em crepes do cabeça, além de me motivarem a, como homenagem, fazer aqui meu primeiro post Não-Xis, me renderam a honra de adicionar uma importante variante sigularíssima ao cardápio do Cabeça: o crepe do Floco.


Não se engane, leitor: o Cabeça não dispõe de um cardápio em papel, e mesmo se de um dispusesse, o crepe do Floco não figuraria entre suas opções. O crepe do Floco é semi-secreto, só quem sabe que ele existe pode chegar e pedí-lo. É claro, meus leitores todos agora o sabem, e peço que isso não seja motivo para aproveitar-se, de má índole, desta informação. Peçam o crepe do Floco com parcimônia, e não estranhem se forem interrogados sobre este que vos escreve, ou mesmo se receberem toneladas de informação gratuita sobre mim. Talvez até devam pagar mais caro, o que não é de reclamar-se, visto que o crepe do Floco é infinitamente superior a qualquer crepe do mundo, como veremos a seguir.


O Cabeça dispõe de quatro máquinas de crepe, cada uma capaz de fritar seis "cápsulas". Os crepes são categorizados no sentido de quantas cápsulas seus recheios ocupam: o simples, de uma cápsula, custa R$ 4,00, o duplo, R$ 5,00 e o triplo, único que deve ser pedido pelos leitores deste blog, is going to set you back seven brazilian dollars.


Se o leitor não está familiarizado com o crepe suíço, pode procurar no google. Entretanto, o que se vê no Google não é fiel ao crepe praticado aqui na baixada do Manduca. Mesmo em um crepe simples, onde o recheio ocupa somente uma cápsula, a massa espalha-se por, pelo menos, as duas cápsulas adjacentes, de maneira que qualquer crepe acaba ocupando uma máquina inteira, independentemente do seu tamanho.


Falando em massa, convém advertí-los, a massa do crepe do Cabeça é mais um diferencial em relação aos inúmeros crepes do nosso litoral: ela não contém sal e nem gordura. É claro, em um blog como este, podemos considerar tal característica como falta gravíssima, não fosse o resultado deliciosamente fofo que se forma: a massa se assemelha muito a um pão ou bolo, e não a uma panqueca, como os demais. Isto faz muita diferença.

"COMO ASIM N~ TEM GORDURA???:::" perguntará [sic] o leitor usual. Calma, respondo. O crepe do Floco é capaz de ultrapassar as barreiras das á-eme, éfe-eme e dos elevador. O recheio inconfundível que gloriosamente preenche esta iguaria singular da culinária gaúcha contemporânea é o que contribui para dar a este crepe o título glorioso de MELHOR CREPE DO MUNDO.

"TA FALA DUMA VES!!1" Ok, ok.

Todos os leitores sabem que os quiosques de crepe em geral permitem combinações de até três sabores, às vezes quatro, o que permite ao cliente, por exemplo, pedir "bacon e queijo nas pontas, chocolate branco e queijo no meio", ou "coração, cheddar e queijo". Saberão os leitores que comigo mantém relações pessoais, também, que o crepe do floco obviamente não toma conhecimento destes grilhões do comércio varejista, consistindo de mussarela, catupiry, cheddar, quatro queijos (o molho antes referido), calabresa, pimenta vermelha, queijo parmesão e orégano.

Creio que agora esteja claro o motivo de tanto alarde.

Vamos ao procedimento de nosso mestre, Cabeça, na feição de mais esta nossa aventura gastronômica.

A máquina de crepes (link com imagem no começo do post, caso alguém comece a ler meus posts no meio) está bem quente desde as 18h, e eu chego mais ou menos pelas 22h30. Dito isto, nosso mestre pincela com um misto inacreditável de gentileza e violência montantes de margarina na superfície escaldante de metal, moldada perfeitamente para acomodar o recheio. A esta altura já estão impregnados na chapa da máquina pedacinhos negros de comida que ficou por ali o dia inteiro, bem como os resquícios lípicos de todos os crepes anteriores. Primeiro, Cabeça deita, em cada cápsula, um paralelepipedo de mais ou menos 0,7cm x 0,7cm x 4cm feito de queijo mussarela. Sobre ele, derrama com sua bisnaga de saco jatos compridos de cerca de 1cm de espessura de cheddar, catupiry e "quatro-queijos" (de agora em diante essa é a denominação correta para a mistura referida), que às vezes chegam a fazer a volta. O resultado é alarmante aos olhos. Ao ver tal espetáculo temos a nítida impressão de que aquele monte de queijo cremoso vai se espalhar por tudo uma vez que a chapa superior descer sobre esta.

Eu e o Cabeça não somos homens de alarmar-se com pouco. Nosso mestre prossegue à aplicação da lingüíça calabresa. Ela é cortada em pequenos paralelepípedos de mais ou menos 0,4 x 0,4 x 1cm, e é da marca Majestade, como o bacon do Cabeça (fonte: straight from the horse's mouth). Creio que não preciso dissertar sobre a quantidade da carne. Sobre isto vai a pimenta vermelha (bastante), o orégano (também conhecido, após as duas da manhã, como "orégo") e, adição de 2010, o queijo parmesão ralado grosso.

Sobre isso o cabeça despeja jatos finos de massa, sem a intenção de cobrir completamente o recheio e também sem deixá-lo plenamente descoberto à queda iminente da chapa superior. O fechamento da máquina é mais uma das habilidades singulares do cabeça. Ao invés de fechá-la do modo convencional, nosso mestre desce-a devagarito, LARGANDO-A a menos de um milímetro de distância do recheio, gerando mínimo impacto e evitando o espalhamento dos ingredientes mais líquidos.

Contudo, não se pode afirmar que NÃO HÁ espalhamento (oxímoro duplo). Os queijos, bem como a massa, por sorte, acabam por escorrer PARA OS LADOS, e não para fora da máquina, gerando duas novas "orelhas", feitas só de queijo e condimentos. O crepe, então, passa muito tempo na máquina, e tem de ser virado (com extrema habilidade) por mais de uma vez, a fim de assegurar integridade estrutural no momento do consumo. Mais de uma vez, nos tempos antigos, ajudei o Cabeça a aperfeiçoar suas técnicas de engenharia, e inclusive mais de uma vez meio que me queimei porque meu crepe se desbeiçou tanto.

Podemos dizer que, se alguém não inventou coisas assim na suíça, o Cabeça talvez seja um pioneiro numa arte ainda por nascer: o crepe monstro. De maneira alguma o crepe que o Cabeça sempre faz pra mim pode se assemelhar ao que se chama por aqui "crepe suíço". A massa é, em praticamente todos os pontos do crepe, permeada por catupiry, cheddar, "quatro-queijos", mussarela, pimenta e orégano, e inclusive, em alguns pontos das orelhas que cercam nosso triplo, podemos encontrar pedaços semi-carbonizados de calabresa. É lindo. É maravilhoso. É apoteótico. É quase inacreditável.

A temperatura, no início, beira o intolerável. O sabor é indescritível. A complexidade é definitivamente uma marca expressiva, bem como a heterogeneidade. Os diferentes queijos se espalham para diferentes áreas, gerando combinações cada vez mais complexas, sempre trespassadas por uma leve ardência da pimenta, e o aroma pizzesco do orégano, inconfundível. As orelhas oferecem ótimo contraponto às cápsulas, oferecendo diversas opções nas mordidas, nas quais podemos variar a proporção carne-queijo conforme a localização no crepe.

Quem nunca comeu um crepe suíço gaúcho talvez não deva começar por aqui. Quem já comeu com certeza tem que passar por esse lugar, pelo menos para rever seu conceito de crepe.

Nota Final: 10,0

Pontos massa: Um crepe monstro; muitos queijos; atendimento espetacular; bebida gelada; ceva latão a R$ 3,50; o melhor crepe do mundo; permitido fumar; bons lugares pra sentar (o centrinho inteiro). Pontos palha: não consigo pensar em nenhum.

Amanhã volto, com a segunda parte do especial Litoral Norte.

4 comentários:

Gabi disse...

teu blog me dá fome

piffero. disse...

Eu acredito que presenciei o momento em que este crepe foi idealizado, testado e aprovado pela primeira vez. Pena que eu não lembro o dia, se não podíamos declarar feriado bicuira.

johnny disse...

merecida exceção! teu blog é a mais dileta e elocubrante literatura sobre consumo alimentício já vista. tem uma saborosa riqueza imagética, salpicada duma dose abagualada de gonzo. já tava na hora da gastronomia lancheira, tão dilapidada por comunistinhas e bons samaritanos, ser retratada com mais finesse e conhecimento de causa. vou continuar lendo!

Anônimo disse...

Atualização djá!