quinta-feira, 21 de julho de 2011

Speed Lanches - Uma aventura pretérita

Escrevi este texto ano passado, para uma revista que acabou não saindo. Como ando recebendo muitos e-mails me cobrando atualizações, tomem essa e parem de encher o meu saco:

O dia da semana não importa, era o final de Outubro em tempos de la niña, aquecimento global, epidemia do crack e veganismo. Caminhávamos eu e Lorean Paulo, mais sofrendo do que apreciando os musculosos fótons que desciam às nossas moleiras e cangotes em ângulos obscenamente retos, fazendo correr e esconder-se em nossas morenas barbas plácidas gotas de suor.

Desculpem-me se não me atenho à ordem natural do ocorrido, mas sinto que é neste ponto que devo esclarecer que isto se deu após uma sessão de sauna holandesa, dentro de um sedã alemão de 15 anos de idade. Talvez como efeito colateral de tal fator, decidimos por caminhar um pouco sob o antiurbano sol portoalegrense ao longo das belas veias desta ilha de calor que convenciono chamar de Cidade Baixa/Centro no início da primavera. A priori, um erro.

Sabíamos o que faríamos, e não sabíamos. Éramos jovens e sadios, achávamos que sabíamos de muita coisa. A verdade nua e crua era que escreveríamos minha primeira crítica impressa de um xis riograndense urbano, na primeira edição de uma nova revista, no começo de uma nova etapa em nossa juventude, que cada vez mais chamava-se juventude, e não outra coisa. Para tal, nossa típica audácia escolheu uma vítima conhecida e respeitada.

Se o leitor não sabe onde fica o Speed Lanches, corre o risco de sair por aí dizendo que esta coluna é uma porcaria. Está encorajado a fazê-lo, caso julgue assim apropriado. Mas, como ato magnânimo, cedo aos menos experimentados a informação de que o referido templo de apreciação estrambólica da moderna tradição (oxímoro?) gaúcha permanece placidamente assentado na Rua Lima e Silva, muito próximo ao desembocar da Rua Sofia Veloso.

Por muito tempo não vi necessidade de executar apreciação crítica a este estabelecimento, visto que trata-se de um lugar com certo renome e, portanto, infalto de minha humilde glosa. Entretanto, muitos leitores de meu blog especializado no assunto pareciam ansiosos em ver o lugar (e seus derivados) espectado pelo meu crivo, e confesso que com o tempo senti-me impelido a me sentir da mesma maneira.

O fato é que para mim a descoberta do Speed Lanches está longe de ser recente, e freqüento o lugar com a regularidade de um pássaro que só pousa no seu ipê de vez em quando, mas o faz há muito tempo. Inclusive cheguei a conhecer o que julgo terem sidos os áureos tempos da lancheria, quando as chapas eram comandadas por uma pequena mulher/mito apelidada Pikachu. Não discorrerei sobre visitas passadas neste parco espaço (não temo a página em branco, mas suas margens), mas considero digno de nota uma anedota em time-lapse: Com o tempo (e conto a história de meu ponto-de-vista de freqüentador casual e não-enxerido), a fama de Pikachu foi crescendo e, suponho, ela começou a trabalhar em horários menos movimentados, o que motivava os clientes a requisitarem ao pobre chapista substituto que fizessem o xis "que nem o da Pikachu [sic]". Realmente, quem viu aquela lenda em ação não esquece: quebrava os ovos, derramava seu conteúdo sobre a chapa e lançava a casca à lixeira com apenas uma das mãos, e sem olhar. Sua habilidade e franca vocação para a façanha eram evidentes e notáveis. Mas divago. Volto ao onde e ao o quê, saio do quem:

Jamais pisei no lugar desprovido da intenção de pedir algo que não o xis-coração (que, de tão lendário, custa (nine and a half brazilian dollars) significantemente mais do que os outros), e não pude escapar de tal instinto, ou muito menos excluir meu irmão exsangüíneo do referido. Dois tapas no balcão (que serve apenas para que não babemos na chapa (que ocupa mais espaço do que os clientes) e como apoio para os cotovelos) e estavam encomendados os dois leviatãs que permaneceriam em nossos organismos por meses a vir.

Observar a chapa e, consequentemente, a manufatura do xis, não deve ser privilégio em um típico xis das bandas de cá e, felizmente, o Speed Lanches não carece nem um pouco de visibilidade fordista. Meu olho clínico para o assunto permitiu-me a apreciação de certas minúcias que deixo para o leitor examinar sem a minha condução epistemológica. Entretanto, uma etapa importante da manufatura que influencia diretamente no resultado final está no derradeiro momento antes de sermos servidos: o chapista (nesta feita, um que tive a oportunidade de avaliar em seu primeiro dia de trabalho) reabre o xis recém prensado para depositar nele porções extras de coração que aguardavam a prensagem sibilando na chapa.

Sim, é um xis prensado com todos os ingredientes obrigatórios (pão, maionese, coração, ovo, alface, tomate, milho, ervilha, queijo) e um diferencial (batata palha). O tomate é cortado em paralelepípedos tridimensionais, e o alface, em tiras. O milho, a ervilha e o queijo não apresentaram-se com personalidade ou quantidade suficientes para merecer algum espaço nestas sinceras palavras. O ovo merece certo destaque, principalmente por posicionar-se amontoado entre duas fartas e caóticas camada de corações de galinha inteiros, fritos na chapa e temperados com uma mistura misteriosa.

O coração não poderia deixar de ser a grande estrela neste xis cuja reputação antecede, e somos brindados com um xis monstruoso e intimidante que assusta à primeira vista, e não parece ser capaz de decepcionar qualquer expectativa possível sobre um xis (é claro, não sou nenhum halterofilista ou leão-de-chácara). A altura insensata da iguaria (um exercício desafiador para as mandíbulas mais incautas) nos proporciona uma experiência sensorial de uma imersão fora do comum. A própria disposição dos bancos e balcões nos leva a mergulhar no xis quase literalmente. Não foram raras as vezes em que os dois então jovens editores-to-be entreolharam-se, quase envergonhados, lambuzados de gordura, timidez, e uma estranha sensação de insignificância. Outro ponto digno de nota, mas que não tange à manufatura stricto sensu, é o lambuzamento do pão pela gordura da chapa (característica essencial e, neste caso, quase inata e fatalmente intrínseca), que deleitou meu amigo e parceiro e fez render boa parte do colóquio. O referido pão lambuzado de gordura, infeliz e inevitalmente, acabou sendo o protagonista das mordidas iniciais (função que deveria ser, ao longo de todo o xis, do coração). O fato é facilmente explicável pela técnica da abertura posterior à prensa (já referida), que acaba por desprover a refeição de integridade e homogeneidade estrutural em detrimento do arregamento no coração (como dito, arregado pa carai), opção que deixarei a cargo do leitor decidir entre WIN ou FAIL. Embora o xis careça de regularidade a longo prazo, a maionese é muito bem distribuída (a má-distribuição da maionese pode ser um dealbreaker, como já discutido ad nauseam (pun intended) no referido blog especializado), e confere ao prato um equilíbrio muito bem-vindo por este dedicado yours truly.

Os pontos que falharam em agradar plenamente este novato e que podem ser salientados são: parca distribuição de papéis com fins higiênicos (seria muita bondade minha chamar aquilo de guardanapo), um atendimento sob medida para quem não está nem aí para o atendimento, e talvez uma certa falta de tempero, assunto, neste caso, delicadíssimo, pois poderia afetar a belíssima falta de equilíbrio presente em mais esta obra de arte.

Minha nota final desta visita foi um redondo 9.0.

A nota do Lorean foi 9.3. Ele disse que foi porque ele não conseguiu comer o xis inteiro, e ele "curte comer inteiro" (eu prefiro quando o xis me ganha).